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O liberal de WhatsApp

  • Foto do escritor: Marcelo Rossoni
    Marcelo Rossoni
  • há 7 dias
  • 3 min de leitura

Marcelo Rossoni


Outro dia encontrei um amigo — sujeito generoso, boa conversa, sangue bom, CB, como se diz na linguagem popular. Tipo que paga o café, defende a ideia de que Ricardo Ferraço vencerá a eleição para governador em 2026, no primeiro turno — mesmo com Pazolini apoiado por Paulo Hartung —, e acha que política é só escolher um lado e torcer. Trabalha num cargo público no governo do Espírito Santo e, entre um comentário sobre o futebol e outro sobre o preço da gasolina, lançou a frase com o ar triunfante de quem acabou de descobrir a pólvora:


— Eu sou um liberal.


Dei um gole no café, tentando ganhar tempo.


— Liberal? — perguntei, como quem confirma se ouviu direito. — Você leu A Riqueza das Nações, de Adam Smith?


Silêncio.

— David Ricardo, talvez? Thomas Malthus? John Maynard Keynes? Paul Samuelson?


Ele me olhou como quem tenta lembrar se esses nomes estão no secretariado do governo de Renato Casagrande.


Expliquei, sem pressa, porque a paciência ainda é uma forma de caridade. Meu professor de Economia no curso de Administração de Empresas, na Faesa, Expedito Bogéa, foi quem me ensinou que Adam Smith (1723–1790), nascido na Escócia, acreditava que, ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo acabava ajudando o coletivo — a famosa “mão invisível”, que de invisível tem apenas o truque. David Ricardo (1772–1823) desenvolveu a ideia das vantagens comparativas, segundo a qual as nações prosperam quando trocam o que fazem melhor. Thomas Malthus (1766–1834), menos otimista, advertiu que a população cresce mais rápido que os alimentos, o que explicaria a fome e o desespero.


O professor Expedito Bogea contava que aprendeu mais de economia nos livros importados que comprava para a esposa traduzir do inglês do que nas aulas da própria faculdade. Explicava que, depois dessa geração cheia de conceitos e definições, veio John Maynard Keynes (1883–1946), que “fez escola” ao olhar para os escombros da crise de 1929 e concluir que o mercado, sozinho, é bom apenas em cair. Keynes defendeu que o Estado entre em cena para evitar que a liberdade vire ruína.


Paul Samuelson (1915–2009), o mais novo deles e Prêmio Nobel de Economia, costurou um meio-termo: o Estado não deve sufocar o mercado, mas o mercado também não pode funcionar sem o Estado — como um carro sem freio descendo ladeira. Li a biografia de Samuelson, aliás, num exemplar que me foi emprestado há muitos anos pelo meu querido e saudoso sogro, Mário Ferreira Sacramento, professor catedrático do curso de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo. Foi ele quem me ensinou que compreender economia é, antes de tudo, compreender gente.


Enquanto eu falava, o amigo me observava com o olhar paciente de quem esperava o elevador abrir a porta. Quando terminei, respondeu:

— Ah, mas eu vi num vídeo no WhatsApp que liberalismo é deixar o mercado livre e o Estado não se meter.


Foi quando percebi que a “mão invisível” talvez tivesse puxado o fio errado da história.


— Meu caro — disse eu, já sem o verniz da diplomacia —, se o seu curso de liberalismo veio da vovozinha do WhatsApp, devolva o diploma. Isso é catecismo de rede social, não economia política.


O liberalismo, de verdade, não é uma senha de vaidade. É um debate de séculos, atravessado por crises, revoluções e contradições. Smith acreditava na moral antes do lucro. Ricardo, no equilíbrio das trocas. Malthus, nos limites da terra e do homem. Keynes, na responsabilidade pública diante do caos. Samuelson, no bom senso que falta a quase todos. Nenhum deles acreditava que o mundo se resolve deixando o mais forte vencer.


Mas o liberalismo de rede social é outra coisa. Cabe num meme, rima com “imposto é roubo” e se disfarça de patriotismo. É um credo portátil: o sujeito se diz liberal até o dia em que o hospital público o salva ou a escola gratuita acolhe o filho. Aí descobre que o Estado não é tão inútil assim — apenas mal compreendido.


Meu amigo já mexia no celular, distraído. Disse que tinha reunião, pagou o café e foi embora com a serenidade de quem acredita ter vencido o debate. Fiquei olhando a xícara vazia e pensei que, no Brasil, o problema não é ser liberal, socialista ou conservador — é confundir opinião com leitura.


A gente virou um país de certezas apressadas, onde cada um se informa pelo algoritmo e discute como se fosse especialista. Uns se acham discípulos de Smith, outros de Marx, mas a maioria nunca leu nem bula de remédio. E talvez o verdadeiro liberalismo — aquele que nasceu da razão, da dúvida e da coragem de pensar — comece exatamente onde termina o nosso: no silêncio depois da frase “eu sou um liberal”.


Marcelo Rossoni é jornalista.

 
 
 

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2 comentários


martinsmarcelo930
há 2 dias

Tá explicada a opção do "amigo" para o governo estadual... desce o pano.


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aidabuenobastos
há 6 dias

Que crônica saborosa, que texto! Mas, dá tristeza ler. Porque não vejo luz no final desse túnel de ignorância em que muitos neste Brasil entraram. Se julgam letrados em Economia sem nunca terem visto sequer a capa de um livro. Quando o WhatsApp basta para alguns, quem sofre (e paga) é o país inteiro.

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